─ Onde você estava esse tempo todo? Estava preocupado contigo, por um
momento pensei que tinha acontecido algo ─ Leandro perguntou.
─ Fui visitar minha tia e meu irmão ─ eu objetei.
Estava meio estressado e nervoso. Sentia que minha vida estava nos
últimos momentos.
─ Leandro. Faz uma massagem em minhas costas?! O dia hoje foi tenso pra
mim. Aliás, toda a minha vida está tensa.
Relaxei mais um pouco. Deitei. Leandro ligou a TV e de repente uma
música bem conhecida estava passando numa novela, não sei se era das seis ou
das sete. Era a música de Renato Russo, Mais Uma Vez. Cantava o trecho:
“... Tem gente que está do mesmo
lado que você, mas deveria estar do lado de lá. Tem gente que machucam os
outros, tem gente que não sabe amar...”
Aquele trecho da música ficou na minha cabeça. Tentei decifrar o que
dizia aquele fragmento. Eu machuquei as pessoas que mais amava nesse mundo e
passei a amar aquelas que não deveriam nunca ter entrado na minha vida, ou
seja, aquelas que deveriam estar do lado de lá, longe, muito longe de mim.
Exceto Leandro que nunca me machucou na vida e que sempre esteve ao meu lado,
como está até hoje. Se bem que ele também foi influenciado a usar drogas por
Carlos. Leandro tinha um medo terrível dele. Tudo que Carlos pedia pra Leandro
fazer, fazia, sem reclamar nem retroceder. Foi Carlos que colocou Leandro no
mau caminho. Leandro tentou sair do poço onde estava, mas Carlos não deixava.
Arrependo-me até hoje de ter conhecido Carlos. Maldita hora que eu traguei
aquela maconha, maldita hora! Se eu não tivesse conhecido aquele desgraçado,
hoje minha vida seria outra, teria fé disso. Deram dez horas da noite e eu
acordei. Sempre acordo excitado. Leandro estava deitado ao meu lado, não
dormia, só descansava. Comecei a fazer carícias em seu ombro pra ver se ele
despertava. Abriu os olhos risonho.
─ Está a fim de fazer amor agora? ─ eu perguntei.
─ Preciso lhe contar uma coisa ─ ele disse.
─ O quê?!
─ Eu tive culpa em boa parte da tragédia que a sua vida é hoje.
─ Do que você está falando Leandro?
─ Estou falando do primeiro dia que nós nos vimos na escola. Do
primeiro trabalho de Biologia, no primeiro contato com a droga.
─ Sinto muito, mas eu não estou entendendo o que você quer dizer com
isso.
─ Eu que pedi ao Carlos pra desencaminhar você. O Carlos não queria,
mas eu insistir. Notei que você tinha cara de ingênuo, de bobo e quis desviá-lo
para o caminho da dependência.
Eu me levantei espantado, incrédulo:
─ Não foi o Carlos, mas sim você?! ─ eu conclui.
─ Infelizmente. Não quis medir esforços com relação a isso. Perdoe-me
se fui pra você um retrato bem desenhado e perfeito do Diabo, mas meus
instintos pediam-me que eu fizesse isso ─ ele disse honestamente, olhando bem
fundo nos meus olhos.
─ Eu não acredito nisso. Você não seria capaz de uma loucura... ─
tentei terminar, mas ele interrompeu:
─ Mas eu não fui apenas o retrato bem desenhado do Diabo, mas a figura
eterna e magnífica de Deus também. O amigo que contou toda a sua vida pro
empresário do Corinthians fui eu. Pedi a ele que lhe desse uma chance na vida
porque você precisava e estimava isso há muito tempo. Era o seu sonho, Bruno,
era um sonho lindo e raro. Da mesma forma que eu pus você no caminho longo e
sofrido da dependência química, da mesma forma eu pus você em outro caminho, o
caminho em busca da felicidade. Você alcançou o sonho, o sucesso, obteve fama e
dinheiro. Mas foi você que resolveu voltar para o mundo das drogas. A escolha
foi sua. Você estava bem de vida, o mundo estava aos seus pés e você tinha tudo
pra se dar bem na vida. Acho que você deve ter percebido que tudo aquilo era refugo,
e era mesmo. Porém não quis acreditar que era refugo por justamente parar no
caminho e voltar para o primeiro sem olhar para trás.
─ Por que você fez isso? ─ perguntei com lágrimas nos olhos.
─ Por que você não pertence as drogas e nem as drogas pertence a você.
Se quiser, Bruno, ainda a tempo de voltar ao começo e recomeçar, mas recomeçar
tudo diferente. Sei que o que você perdeu não vai ser mais conquistado, seu pai
não vai voltar mais a vida, mas a morte de uma pessoa tão querida, tão amada
por todos pode ser superada, o tempo cura as feridas, das mínimas as mais
extremas. Você tem que ir em busca do seu amor, a vida, do seu verdadeiro amor,
a Doralice. Vocês ainda se amam e você não vai deixar o Carlos ganhar essa
parada, vai? ─ ele conjecturou.
─ Ela
não vai querer saber mais de mim ─ sentei desolado.─ Tenta. Apenas tenta ─ concluiu ele, quase insistindo.
A última música da Timbalada foi Adão e Eva. Quando ouvia essa música
ficava ainda mais estremecido. Lembrava do meu romance com a Doralice. Eu era o
Adão e ela, Eva. O paraíso era a praia de Itapoã onde fazíamos nossas loucuras.
Curtir toda a música. Cantava o trecho:
“Quando você foi embora e levou
minha paz, é impossível te esquecer te quero muito mais. Quero ter você comigo,
pra mim é tudo que eu preciso. Adão e Eva no paraíso, um só coração”...
Carlos estava ali por perto com mais alguns homens mal encarados. Eles
escondiam cada um, um revólver nas calças. Carlos tramava vingar-se de mim
naquela noite. Eles me avistaram. Percebi que eles corriam atrás de mim, tinham
já puxado o revólver e já começaram a atirar. O trio estava perto do
Pelourinho. Desci a ladeira desesperado. De repente avisto uma barreira de
homens com revólveres nas mãos no fim da ladeira. Parei, olhei pra trás. Carlos
e os outros homens se aproximavam e todos cercaram-me:
─ Acabou pra você, Bruno! A sua vida acaba por aqui,
moleque. Pensou o quê? Que ia continuar nessa vida e que nunca ia se dar mal? ─ disse
Carlos.
─ O que eu fiz para você me matar Carlos? Abaixa essa arma, por favor,
vamos conversar ─ eu disse muito ofegante e exausto da corrida.
─ Cadê minha grana que tu me deve? ─ ele perguntou.
─ Grana? Que grana? ─ eu perguntei sem saber do que se tratava.
─ Não se faça de idiota, você sabe muito bem do que eu estou falando. A
grana das drogas que você me deve, há muito tempo. A dívida acumulou e você
nunca me pagou. Qual foi o nosso trato Bruno? Eu te daria as drogas e você me
pagaria, nota por nota. Não foi esse o nosso trato?
─ Não foi bem exatamente isso. Você disse que eu pagaria uma parte e a
outra parte eu pagaria em troca de favores sexuais com o Leandro. Foi esse o
nosso trato ─ eu retruquei.
─ Eu nunca falei isso pra você. Eu disse que você me pagaria em
dinheiro. Sua relação com o Leandro não entrou na negociação que nós fizemos.
Cadê minha grana? ─ ele continuou insistindo.
─ Não tenho dinheiro. Perdi todos os meus bens, carros, casas... perdi
tudo, estou a míngua, não tenho dinheiro.
─ Se você não me pagar por bem então vai pagar por mal. É assim que
você quer? ─ Carlos já apontava a arma para mim.
Ajoelhei-me nos pés de Carlos, cruzei as mãos e pedi humildemente,
chorando:
─ Por favor, Carlos, não me mata, não faz uma crueldade dessas comigo,
por favor, eu te peço.
Leandro apareceu e no pé da ladeira falou:
─ Carlos, não faz isso com ele. Abaixa essa arma ─ disse Leandro já
desesperado.
─ Sai daqui Leandro, a conversa não é contigo ─ gritou Carlos.
─ Em nome da nossa amizade não comete essa loucura, por favor, ─
implorou Leandro.
─ Amizade? Que amizade? Que amizade Leandro? Eu não sou mais seu amigo
desde o momento que você se bandeou para o lado desse merda. Nunca sei quem
você é cara, nunca lhe conheci na vida ─ Carlos retrucou.
─ Vai embora Leandro, eu não quero que você veja isso. Vai embora! ─ eu
disse.
─ Carlos, me leva, mas não leva meu amigo, eu te peço, por favor. Me
mata no lugar dele. ─ pronunciou Leandro.
De repente ouvem-se sirenes de
polícia.
─ A polícia vai pegar você, seu bando e todos vocês vão parar na cadeia
se cometerem esse crime. Foge enquanto é tempo, Carlos, foge! ─ ordenou Leandro
a Carlos.
Carlos olhou pra mim e ordenou:
─ Levanta e vasa daqui, já! Vai, desaparece da minha frente, agora!
Vai!
Estava fatigado, não suportava mais. Levantei e iniciei a partida.
Carlos apontou a arma em minha direção e atirou. Foram dez disparos. Cinco na
cabeça e mais cinco nas costas. Olhei pra casa onde morei e disse as últimas
palavras:
─ Pai! Perdoe-me!
Cai ali mesmo, ensanguentado, morto. A
música de Timbalada ainda tocava bem alto. Leandro, desesperado, correu até a
mim e agarrou-me no colo. Carlos e os outros homens fugiram. A polícia viu a
ação deles e tratou de caçá-los imediatamente. A cena foi chocante. Todos
daquele bairro e os que curtiram o carnaval ouviram os tiros e correram pra ver
o que tinha acontecido. Rodearam o meu corpo estirado no chão. Alguns gritavam
desesperados, outros choravam. Meus ex-vizinhos me reconheceram e menearam um
gesto negativo com a cabeça.
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